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JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E A QUESTÃO “FAKE NEWS”

Atualizado: 7 de jun. de 2021

Direito



JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E A QUESTÃO “FAKE NEWS”

Análise da Importância do Supremo Tribunal Federal diante da Corrosão da Democracia

Júlio César Muniz



1. INTRODUÇÃO


O protagonismo do Poder Judiciário diante de muitas questões de grande relevância no cenário brasileiro suscita indispensável debate sobre as funções ou atribuições de poder consubstanciadas no texto da Constituição da República.

Não sendo os membros do Poder Judiciário expressão da vontade popular por meio da via eletiva democrática, quais seriam as fronteiras entre o cumprimento de suas atribuições constitucionais e a invasão das esferas de competência dos poderes Legislativo e Executivo, cujos integrantes são alçados ao poder pelo voto?

A questão da legitimidade democrática é um dos grandes “nós” da judicialização da política, haja vista a crítica contundente que se faz ao fato de haver mecanismos democráticos no Poder Judiciário.

Assim, a questão primordial a ser enfrentada é se a maior participação do Poder Judiciário no âmbito político das decisões representa a extrapolação de seus limites de atuação e viola a clássica tripartição das atribuições de poder.

Para tanto, nessa análise, não se pode desbordar da função precípua do Supremo Tribunal Federal como guardião da ordem constitucional, mormente dos pilares que estruturam o Estado Democrático de Direito e das garantias e direitos fundamentais.

A problemática atual em torno da questão da judicialização da política tem preenchido a pauta de inúmeras discussões no meio acadêmico e até mesmo nas diferentes instâncias de poder, chegando-se até mesmo a atos extremistas e antidemocráticos de grupos portadores de ideologia que se assemelham ao protofascismo.

A judicialização da política é um fenômeno complexo que precisa ser analisado sob a perspectiva de um recorte histórico do cenário brasileiro em que se vive uma chamada crise de representatividade do Poder Legislativo e a corrosão da legitimidade do Poder Executivo ante uma instabilidade política de relevantes proporções.

Desse modo, malgrado as diferentes abordagens sobre o tema, este merece enfrentamento a partir da perspectiva epistemológica lançada pelos estudos sistemáticos da teoria da democracia, cuja reflexão propiciou o repensar do arranjo institucional e do papel dos poderes constitucionalmente estabelecidos.

Com efeito, a análise da questão da judicialização da política e a questão das “Fake News” que atormentam a democracia brasileira, passa necessariamente pela compreensão do papel do Supremo Tribunal Federal ante a tentativa de corrosão da democracia no Brasil.

A Constituição da República de 1988 consagrou em seu art. 2º a clássica divisão dos poderes, instituindo que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.” De acordo com o princípio da separação dos poderes um poder não pode invadir a discricionariedade dos outros, sendo este um ponto de equilíbrio fundamental, uma linha fronteiriça (STRECK, 2013, p. 145).

Nada obstante, a configuração dessa organização e disposição dos poderes, o fato é que depois da promulgação da Constituição da República de 1988, houve uma expansão da jurisdição constitucional no Brasil, sendo que para Luís Roberto Barroso “uma das causas determinantes foi a ampliação do direito de propositura no controle concentrado, fazendo com que este deixasse de ser mero instrumento de governo e passe a estar disponível para as minorias políticas e mesmo para segmentos sociais menos representativos.” (BARROSO, 2009, p. 264).

Como corolário desta notável expansão da jurisdição constitucional surge a questão da judicialização da política.

Nessa direção, a importante contribuição de Luís Roberto Barroso que afirma que a judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorreu do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política (BARROSO, 2016).

Noutras palavras, a judicialização da política deriva do modelo constitucional brasileiro, implantando pelo próprio poder constituinte originário. Assim, o Poder Judiciário é chamado a se pronunciar sobre assuntos considerados do âmbito de atuação do Legislativo e do Executivo.

Trata-se da expansão das atribuições do Poder Judiciário sobre as políticas executivas e legislativas do Estado, projetando uma grande importância do Judiciário em oferecer respostas diante da omissão dos outros poderes.

Em interessante análise, Clarissa Tassinari suscita a articulação do trinômio Direito, Política e Judiciário para a compreensão do fenômeno da judicialização da política. Assim, “o constitucionalismo pode ser definido como uma tentativa jurídica (Direito) de oferecer limites para o poder político (Política), o que se dá por meio das Constituições.” (TASSINARI, 2013, p. 28).

Por certo, a análise do fenômeno judicialização não pode estar divorciada do processo de constitucionalização do direito ocorrido, sobretudo, no pós Segunda Guerra Mundial, em que se destaca uma maior interferência do Estado na sociedade, o que, em face da inércia dos demais Poderes, abriu espaço para a jurisdição, que veio a suprimir as lacunas deixadas pelos demais braços do Estado (TASSINARI, 2013, p. 32).

Trata-se da relevante atribuição assumida pelo Poder Judiciário a partir da promulgação da Constituição de 1988 e que conferiu ao Supremo Tribunal Federal uma posição importante de guardião da Carta Constitucional e dos direitos fundamentais da pessoa humana (VIANNA, 1999, p. 47).

Não se pode olvidar, entretanto, que da própria ampliação do papel político-institucional do Supremo Tribunal Federal consubstanciou-se a ideia de ativismo judicial, com a crescente intervenção decisória do Judiciário em temas polêmicos e de envergadura social, política e econômica.

Desse modo, por vezes, o Judiciário tem se imiscuído em temas que podem ser essencialmente de atribuição dos outros poderes.

Numa perspectiva de índole mais sociológica, a judicialização das relações sociais ressalta o papel do Judiciário como uma espécie de “alternativa para a resolução de conflitos coletivos, para a agregação do tecido social e mesmo para a adjudicação da cidadania” (TASSINARI, 2013, p. 22).


3. A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA FRENTE ÀS FAKE NEWS E A AMEAÇA DE CORROSÃO DA DEMOCRACIA


É preciso considerar que a questão do papel da jurisdição constitucional e da democracia no Brasil suscita algumas reflexões importantes. Primeiro, não há como olvidar que a Constituição da República de 1988 de caráter analítico e dirigente conferiu ao Poder Judiciário um papel relevante, havendo um deslocamento para o âmbito deste poder de questões antes relegadas à política (OLIVERIA, 2008).

Para Eduardo Appio “o juiz constitucional tem enorme importância neste contexto, porque responsável direto pela concretização dos valores constitucionais e de sua injustificável omissão não raro resulta a ineficácia absoluta do dispositivo constitucional (2008, p. 33).

Segundo, porque é preciso considerar as peculiaridades da democracia brasileira que evidencia problemas, como a crise de legitimidade dos poderes Legislativo e Executivo, que devem ser considerados. Nessa direção, a importante contribuição de Lênio Streck (2014, p. 167):


O Estado brasileiro não se constitui como um espaço público livremente, e pactuado ao qual todos os segmentos sociais tenham iguais possibilidades de acesso, desde que participem de um jogo político cujas regras são fixadas em normas gerais, objetivas e estáveis, como quer o modelo liberal clássico e é o que define a democracia. Historicamente, o Estado brasileiro se caracteriza, antes, como um locus tradicionalmente apropriado por elites econômicas que instrumentalizam o poder para servir seus próprios negócios, quase como se tivéssemos uma espécie de apropriação privada dos espaços públicos.


Nessa perspectiva deve-se refletir sobre os riscos de o Poder Judiciário, especialmente, o Supremo Tribunal Federal tornar-se o superego da sociedade ou uma espécie de governo de juízes, substituindo a soberania popular por uma soberania da elite judiciária (FERREIRA, 2015. p. 157).

Na abordagem enfática de Lênio Streck (2014. p. 161):


O Tribunal não deve ser um guardião de uma suposta ordem suprapositiva de valores substanciais. Deve, sim, zelar pela garantia de que a cidadania disponha de meios para estabelecer um entendimento sobre a natureza de seus problemas e a forma de sua solução (....) A invasão da sociedade pelo Judiciário resulta no enfraquecimento da democracia representativa.


Assim, a atuação do Poder Judiciário, notadamente do Supremo Tribunal Federal deve ser no sentido de se estabelecer procedimento e não para se estabelecer conteúdo, ou seja, em relação a conteúdos, o tribunal deve manter-se fraco, mas no que se refere à proteção do processo de formação da vontade é necessária uma atuação ativa[1], levando em conta a responsabilidade política que não se traduz em ato de escolha e sim como compromisso com a moralidade política, devendo o Tribunal Constitucional, em última análise dar a sua contribuição preservando a Constituição, dando-lhe a melhor interpretação e preservando a decisão do legislador.

Na atual quadra histórica, o Supremo Tribunal Federal tem sido frequentemente chamado a se pronunciar sobre temas e questões da maior relevância para a sociedade brasileira, razão pela qual a Corte Constitucional brasileira tem sofrido constantes ataques de grupos protofascitas a serviço de uma ideologia de poder que visa o esfacelamento da democracia.

Nesse compasso, vivenciamos no processo eleitoral e na atual ordem política brasileira a disseminação constante das chamadas “fake news”, ou seja, a divulgação e propagação de notícias falsas por meio de mecanismos tecnológicos, que resultam na contaminação de mentes e na formação de opinião pública a partir de uma visão totalmente distorcida da realidade.

O “falseamento” da realidade produz instabilidade social e institucional, fragiliza e corrói as bases da democracia brasileira, na medida em que cria uma atmosfera de aparente conflito entre os poderes para dar vazão a uma sedução autoritária de centralização e concentração de atribuições nas mãos do Poder Executivo, a exemplo do que ocorreu no Brasil durante o período da Ditadura Militar, que perdurou de 1964 e 1985.

Ademais, a fábrica de “fake news” estabelecida no Brasil, ao trazer desinformação, insegurança, instabilidade e o “falseamento” da realidade, violam as liberdades públicas consagradas no texto da Constituição da República.

Assim, dentro da órbita jurídica, após incisivos ataques sofridos tanto pelos ministros que compõem a Corte Constitucional quanto pelo próprio Supremo Tribunal Federal, este por meio de seu presidente à época dos fatos, ministro Dias Toffoli, resolveu instaurar o Inquérito n. 4781, com o objetivo de investigar a existência de notícias fraudulentas (fake News), denunciações caluniosas e ameaças contra a Corte, seus ministros e familiares.

Como desdobramento da deflagração do Inquérito n. 4781, o partido Rede Sustentabilidade ingressou com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 572 (ADPF n. 572) para questionar a Portaria da Corte que determinou a instauração do referido inquérito, entretanto, por 10 (dez) votos a 1 (um) a ADPF n. 572 foi julgada improcedente, mantendo-se, portanto, o processamento das investigações em sede do Supremo Tribunal Federal.

Em que pese as posições em contrário, a atuação do Supremo Tribunal Federal frente ao episódio das fake news, é preciso mensurar a importância da Corte Constitucional no cumprimento de seu precípuo papel de Guardião da Constituição e da ordem constitucional brasileira, o que significa, dentre outras coisas, dentro das atribuições que lhe foram conferidas pelo legislador constituinte originário, proteger a o regime democrático e os direitos e garantias fundamentais consagrados na Lei Maior.

4. CONCLUSÃO

Ao analisar o fenômeno da judicialização da política, suscitando a partir da lógica da divisão dos poderes prevista no texto da Constituição da República, o concerto hoje existente entre estes poderes, constata-se que o Judiciário teve uma ressignificação do seu papel após a promulgação da Constituição de 1988, na medida em que num ambiente de transição democrática desenvolveu-se a ideia e apelo de concretização de direitos aos cidadãos.

Houve, inexoravelmente, um crescimento das demandas que aportaram no Poder Judiciário, versando sobre temas de grande relevância política, econômica e social, que ao exigir um efetivo posicionamento e uma resposta por parte deste poder, resultou no crescimento da atividade jurisdicional e naquilo que ficou conhecido como “agigantamento do Judiciário”, que a pretexto de seu papel constitucional e das omissões dos outros poderes da República passou a imiscuir-se em assuntos de índole política, portanto, afetos sobretudo ao Poder Legislativo, detentor da representatividade democrática.

Neste compasso, diante da crise da representatividade democrática observa-se a expansão e o crescimento da atividade jurisdicional, fazendo emergir no plano da realidade fática a questão da judicilização da política.

A judicialização apresentando-se como uma questão social e contigencial, na medida que insurge na ineficiência dos demais poderes e no consequente aumento da litigiosidade.

Das mazelas que orbitam na realidade social e política brasileira reverbera-se a fraude das falsas informações, denominadas fake news, assombrando a democracia brasileira, na medida em que presta um imenso desserviço na melhor compreensão dos arranjos e rearranjos políticos nos quais estamos inseridos.

O “falseamento” da realidade está a serviço da colonização das mentes, almas e corações em nome de um projeto de corrosão e esfacelamento dos pilares da democracia e das liberdades públicas consagrados na Constituição Cidadã.

Nessa perspectiva, não há como olvidar a missão constitucional do Supremo Tribunal Federal enquanto protetor maior da Constituição, sem prejuízo da preservação do primado da harmonia e independência entre os poderes, atuar quando provocado para a garantia das bases constitucionais do regime democrático e da proteção dos direitos e garantias fundamentais.


Mestre em Constitucionalismo e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Especialista em Direito Processual Civil e Direito Empresarial. Licenciatura em História. Professor de Direito Constitucional e Teoria Geral do Direito na UNIPINHAL. Servidor Concursado do TJMG.



REFERÊNCIAIS


APPIO, Eduardo. Discricionariedade Política do Poder Judiciário. Curitiba. Juruá, 2008.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009__________________. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. In: Revista Atualidades Jurídicas, nº 4, jan-fev/2009, OAB. Disponível em http://www.oab.org.br/oabeditora/users/revista/1235066670174218181901.pdf.. Acesso em 29/06/2016

CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.

FERREIRA, Rafael Alem Mello. Jurisdição Constitucional Agressiva: O STF e a Democracia Deliberativa de Jürgen Habermas. Curitiba: Juruá Editora, 2015.

OLIVEIRA, Rafael Tomaz. Decisão Judicial e o Conceito de Princípio: A hermenêutica e a (in) determinação do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

OLIVEIRA, Rafael Tomaz, et al. A Jurisdição Constitucional entre a Judicicialização e o Ativismo: percursos para uma necessária diferenciação. Disponível em:<http://www.abdconst.com.br/anais2/JurisdicaoRafael.pdf>. Acesso em 29/06/2016.

STRECK. Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e Ativismo Judicial: Limites da atuação do Judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013

VIANNA, Luís Weneck. A Judicialização da Política nas Relações Sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.


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